UMA SOCIOLOGIA À ALTURA DE JUNHO
Por RUY BRAGA em seu livro A PULSÃO PLEBÉIA (Ed. Alameda)
Imagem: 17 de Junho de 2013. Congresso ocupado por manifestantes.
Em meados de março de 2013, uma pesquisa realizada pelo instituto Ibope revelou que a popularidade da presidente brasileira Dilma Rousseff havia alcançado um patamar histórico de aprovação: 63% dos entrevistados consideravam seu governo ótimo ou bom e 79% aprovavam seu desempenho pessoal. [http://bit.ly/RfwupJ] Mesmo comparados à aprovação popular de 59% conquistada pelo ex-presidente Lula da Silva no final de seu segundo mandato, os números da presidente eram realmente espetaculares.
No entanto, apenas dois meses após a publicação desta pesquisa, fato inédito na história do país, a popularidade do governo tinha despencado para 30% dos entrevistados [http://glo.bo/1RNeopL]. Ao longo do mês de junho de 2013, em pouco mais de duas semanas de protestos nas ruas, um verdadeiro terremoto social chacoalhou a cena política brasileira, deixando um rastro de destruição da popularidade de inúmeros governos municipais, estaduais, assim como do governo federal.
Contando com 75% de aprovação popular, segundo o Ibope, as “Jornadas de Junho”, como ficou conhecida a onda de protestos inicialmente motivados pelo aumento das tarifas do transporte público, levaram às ruas, em seu ápice, isto é, no dia 17 de junho, mais de dois milhões de pessoas. Sempre segundo o Ibope, protestos foram registrados em 407 cidades, espalhadas por todas as regiões do país.
Dispensável dizer que os grandes meios de comunicação foram totalmente surpreendidos pela escala monumental deste movimento espontâneo. Em sua maioria, os analistas políticos contemplavam exclusivamente as enquetes de opinião, negligenciando importantes tendências subterrâneas que desde 2008 já afloravam em pequenos sismos.
Imediatamente após o início das grandes passeatas, alguns jornalistas alinhados ao governo federal apressaram-se em sustentar que as Jornadas de Junho não passavam de uma tentativa de golpe de Estado trama da mídia conservadora. O reposicionamento da cobertura jornalística em apoio aos protestos e a presença nas ruas das classes médias tradicionais descontentes com o governo petista confirmariam a suspeita.
No entanto, esta hipótese falhou em explicar tanto a natureza massiva e popular dos protestos, quanto a defesa de investimentos para a educação e para a saúde públicas. Finalmente, os protestos não visavam especificamente o governo federal, mas atingiam praticamente todo o mainstream político brasileiro.
Ciente da fragilidade desta elaboração, a cúpula do PT ajustou o calibre do petardo, transitando do “golpe da direita” para o “sucesso do atual modelo de desenvolvimento”. Segundo a reelaboração petista, as políticas públicas do governo federal teriam redistribuído tanta renda, elevando de tal maneira as expectativas populares em relação à qualidade dos serviços públicos, que a “nova classe média” criada durante os anos 2000 teria ido às ruas exigir ainda mais iniciativas do governo federal.
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Sem entrar na questão da existência ou não de uma “nova classe média” no país, a verdade é que esta hipótese não explica o timing dos protestos. Afinal, o que teria acontecido especificamente no mês de junho para detonar a maior revolta popular da história brasileira? Porque razão uma elevação das expectativas populares desaguaria numa onda de mais de dois milhões de indignados nas ruas?
A terceira hipótese buscou localizar as Jornadas de Junho no mesmo diapasão do ciclo de protestos que enlaçou Espanha (2011), Portugal (2012) e Turquia (2013). Em suma, um enrijecido sistema político hierarquizado, fundamentalmente refratário à participação popular, estaria se chocando com uma vibrante cultura política democrática fermentada desde baixo pelas redes sociais eletrônicas.(Ver Marcos Nobre. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.)
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Largamente convincente em sua generalidade, a excessiva dependência heurística desta hipótese em relação às metamorfoses da cultura política deixou na penumbra tanto o evento detonador quanto a abrangência nacional das Jornadas de Junho. Afinal, um protesto repentino em larga escala poderia ser compreendido numa chave tão fluida quanto a do amadurecimento de uma cultura política alternativa?
Aos nossos olhos, todas estas hipóteses contém um grão de verdade: sem dúvidas, muitos foram às ruas convocados pela mídia conservadora, as expectativas com os serviços públicos aumentaram no rastro da desconcentração de renda entre os que vivem dos rendimentos do trabalho e uma nova cultura política democrática desenvolveu-se no Brasil na última década.
Desde 2008, o Cenedic – Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – publicou livros e artigos argumentando, por meio de etnografias de trabalhadores vivendo em bairros populares e periféricos, de análises das modificações recentes da estrutura sócio-ocupacional brasileira e de estudos de caso de trabalhadores precarizados, que, ao invés de consolidar a hegemonia política do Partido dos Trabalhadores (PT), a reprodução do atual modelo de desenvolvimento alimentava um estado mais ou menos permanente de inquietação social capaz de transformar-se em indignação popular. (Ver Robert Cabanes, Isabel Georges, Cibele S. Rizek e Vera da Silva Telles (orgs.). Saídas de emergência: ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo. São Paulo, Boitempo, 2011.)
Herdeiro de uma tradição investigativa orientada pelo diálogo crítico com os movimentos sociais urbanos, em especial, o movimento sindical, o Cenedic foi criado em 1995 pelo sociólogo Francisco de Oliveira para estudar os efeitos econômicos, políticos e ideológicos do “desmanche neoliberal” promovido pelo governo de Fernando Henrique Cardoso sobre as classes sociais subalternas brasileiras.
No Cinedic, a articulação totalizante destas dimensões da crítica social vertebrou tanto os diferentes projetos coletivos de pesquisa do centro de estudos levados adiante nestes quase vinte anos de existência – tais como Os sentidos da democracia (1996), A era da indeterminação (2001), Hegemonia às avessas (2005) e Desigual e combinado (2012) –, quanto influenciou a relação politicamente explosiva de Francisco de Oliveira, um dos fundadores do PT e um de seus mais renomados intelectuais, com o partido que ele ajudou a criar.
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Além disso, este projeto crítico balizou igualmente os vínculosdos pesquisadores com os movimentos sociais, em especial o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), o Movimento Urbano Sem-Teto (MUST), o Movimento dos Trabalhadores da Cultura (MTC) e a Central Sindical e Popular (CSP-Conlutas). O diálogo crítico do Cenedic com os movimentos sociais é um traço constitutivo não apenas da identidade do centro de estudos, como do tipo de investigação realizada por seus pesquisadores.
Talvez por essa razão as Jornadas de Junho tenham surgido para o Cenedic como o resultado bastante previsível de uma situação histórica marcada pela inquietação social dos grupos subalternos com os limites do atual modelo de desenvolvimento. Em 2006, inspirado pelo desafio proposto por Francisco de Oliveira, isto é, investigar as microfundações da macrohegemonia do PT, o Cenedic já havia se lançado à campo, sobretudo, no bairro paulistano de Cidade Tiradentes. Localizado no extremo leste da capital paulista e contando com cerca de 300 mil moradores, a região abriga, além de uma grande favela, um dos maiores conjuntos habitacionais da América Latina.
Em suma, trata-se de um bairro que permite observar o modo de vida dos que conhecem como poucos os reveses do “outro lado” da hegemonia petista. Nas palavras de Francisco de Oliveira, as etnografias realizadas pelos pesquisadores do Cenedic na zona leste de São Paulo revelam, para além da aprovação eleitoral: “o cotidiano de pessoas (kafkianamente) transformadas em insetos na ordem capitalista da metrópole paulistana.
Decifrando o enigma
As vicissitudes cotidianas das famílias trabalhadoras de Cidade Tiradentes, bairro onde 65% dos moradores vivem com uma renda média individual de até US$ 80,00 por mês, revelaram-se abundantemente nas etnografias do trabalho informal, do tráfico de drogas, da subcontratação, da precarização do trabalho doméstico, do comércio ilícito, da violência policial, das ocupações irregulares, da população de rua e das trajetórias das mulheres chefes de família do bairro. Assim, uma miríade de dramas privados foi transformada em fértil matéria-prima para o debate público.
Por meio da descrição etnográfica do cotidiano das famílias do bairro, a pesquisa flagrou a dialética cotidiana entre espaço privado e espaço público movendo-se no sentido da retomada da ação coletiva mediada, não mais pelos sindicatos ou pelos partidos políticos tradicionais, mas pelas igrejas neopentecostais.
(…) Dados colhidos pelo Sistema de Acompanhamento de Greves do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (SAG-DIEESE) mostraram que, em 2012, o país viveu um recorde histórico de greves, inferior apenas aos anos de 1989 e 1990.
Não devemos esquecer que, entre 2003 e 2010, o país criou anualmente 2,1 milhões de empregos formais. No entanto, 94% destes empregos pagam baixíssimos salários (até US$ 430,00). Sem mencionar o fato de que entre 2009 e 2012, o tempo médio de permanência do emprego caiu de 18 para 16 meses, denotando aumento da deterioração das condições de trabalho.[19] Em acréscimo, o estoque de empregos formais diminui ininterruptamente desde 2010, fato este que tende a estressar os jovens que procuram o primeiro emprego formal.
Em suma, desde 2008, o país vive um momento que combina desaceleração econômica, mobilizações grevistas e desgaste de um modelo de desenvolvimento cujos limites redistributivos têm se tornado cada dia mais nítidos. Conforme dados reunidos por André Singer, atual diretor do Cenedic, não foi surpresa descobrir que a maioria dos manifestantes de Junho era formada por uma massa de jovens trabalhadores escolarizados, porém sub-remunerados.
Diferentemente das demais teses a respeito do atual ciclo de revoltas populares, há tempos o Cenedic analisa o “evento detonador” das Jornadas de Junho, isto é, a violência policial militarizada elevada à condição de mecanismo regulador da conflitualidade urbana.
Quer a pretexto da infame guerra às drogas, quer como força de desocupação a serviço das grandes incorporadoras de áreas da cidade ocupadas pelos sem-teto, é notório que a PM brutaliza e mata impunemente, sobretudo, jovens trabalhadores negros e pobres, nas periferias dos grandes centros urbanos do país.
A PM – de todas as instituições criadas pela ditadura civil-militar (1964-1986), a única a permanecer intocada pelo regime democrático – reprimiu com extrema crueldade a manifestação do Movimento Passe Livre (MPL) do dia 13 de junho contra o aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo. Inadvertidamente, a violência policial ajudou a transformar um estado latente de inquietação social em uma transbordante onda de indignação popular.
Para o Cenedic, não foi difícil concluir que, ao reprimir violentamente o MPL, a polícia comportou-se na Avenida Paulista como faz diuturnamente nos bairros pobres e periféricos de São Paulo. Desnudada pelos jornais, a brutalidade militar exercida sobre uma reivindicação considerada justa pela população despertou na juventude trabalhadora a consciência de “fazer explodir o contínuo da história” (Benjamin).
De protestos contra o aumento das tarifas do transporte urbano, as manifestações passaram a mirar outros alvos, como os gastos com a Copa do Mundo, a qualidade da educação pública e, sobretudo, a precária situação do sistema público de saúde (SUS). Inadvertidamente, os manifestantes insurgiram-se contra a própria estrutura de gastos do governo federal que, por um lado, reserva 42,% do orçamento do Estado para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública e, por outro, apenas 4% para a saúde, 3% para a educação e 1%, para o transporte.
Extrapolando os limites do atual modo de regulação conhecido como “lulismo”, as Jornadas de Junho insurgiram-se contra os fundamentos do regime de acumulação predominantemente financeiro que domina a estrutura social do país. Ao fazê-lo, conquistaram um lugar privilegiado na história das resistências populares do Brasil, passando a exigir uma interpretação à altura de seu legado.
Ruy Braga
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VEJA TAMBÉM:
Marilena Chaui – “E agora, PT?”
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Marcos Nobre – “As Ruas em Movimento”
[vimeo=https://vimeo.com/90777741]
Ruy Braga – “A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista” | Debate
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Chico de Oliveira – O Ornitorrinco
[youtube id=https://youtu.be/TexQqHycIV0]
Publicado em: 31/03/16
De autoria: casadevidro247
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
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